É o primeiro precedente envolvendo uso indevido de ágio, segundo advogados
A Câmara Superior, última instância do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), liberou uma empresa autuada por uso indevido de ágio de ter que pagar multa qualificada – de 150% sobre o valor da dívida. É o primeiro precedente favorável aos contribuintes nesse tema, segundo advogados. A decisão, que só tratou da penalidade, se deu por ampla maioria de votos: seis a dois.
Discussões sobre o uso de ágio têm origem em operações societárias. O investidor paga um valor pela rentabilidade futura da empresa que está adquirindo, e, por lei, pode amortizar essa quantia – o ágio – num prazo de até cinco anos, reduzindo Imposto de Renda (IRPJ) e CSLL a pagar.
Só que a Receita Federal costuma autuar o contribuinte quando entende que tal operação foi organizada apenas para reduzir carga tributária. Nesses casos, além de cobrar os tributos que, sem o ágio, ficaram descobertos, aplica a multa de 150% por considerar que houve simulação, fraude e sonegação.
O caso que estava em análise no Carf envolvia a utilização de uma empresa veículo. Essa estrutura é vista, principalmente, quando investidores estrangeiros adquirem participações societárias no Brasil. Em vez de fazer a compra diretamente, eles montam uma empresa brasileira e, por meio dela, efetivam o negócio.
A fiscalização, porém, geralmente não vê um propósito negocial para o uso do intermediário e costuma autuar o contribuinte. Foi o que aconteceu com o Grupo Holcim e a forma como foi feita a aquisição da Cimento Portland (processo nº 19515. 721820/2013-90).
A empresa perdeu a disputa referente ao ágio, mas conseguiu reduzir – e muito – a conta a pagar à União. Os conselheiros cancelaram a multa qualificada. Entenderam que cabe, nesse caso, multa de ofício somente, que é de 75%.
A discussão sobre a multa qualificada ocorreu na 1ª Turma da Câmara Superior e teve como relator o conselheiro Fernando Brasil, representante da Fazenda. Ele votou a favor da empresa. Considerou que, para validar a multa, a fiscalização teria que comprovar que houve dolo por parte do contribuinte.
Casos em que a autuação baseia-se em ausência de propósito negocial somente, disse ele no voto, não caracterizam dolo. “Entendo estarmos diante de operação típica envolvendo utilização de empresa veículo, sem qualquer contorno especial que pudesse ensejar a qualificação da penalidade.”
Brasil ressaltou ainda que, na época da operação societária, a jurisprudência em relação ao tema era oscilante. Essa situação, afirmou, “no mínimo” induzia o contribuinte a realizar tal manobra, o que, na sua visão, também coloca em dúvida a existência de dolo.
O conselheiro Luiz Tadeu Matosinho Machado, que também representa a Fazenda na turma, acompanhou o relator. E, além dele, todos os julgadores representantes dos contribuintes.
“Não existe qualquer ilegalidade aqui ou mesmo nulidade ou, ainda, vício negocial que possa, minimamente, exprimir a prática de sonegação, fraude, conluio e simulação”, frisou o conselheiro Caio Quintella ao apresentar declaração de voto.
Para ele, operações societárias sequer poderiam ser desconsideradas pela fiscalização nos casos em que não há demonstração ou prova de ilicitude. “Não cabe ao Fisco questionar as decisões gerenciais da sociedade, incluídas aqui as estruturas adotadas para promover seus negócios e as vias negociais eleitas, naturalmente, sempre visando o melhor resultado empresarial com o menor dispêndio possível.”
Mas a operação em si, no caso do Grupo Holcim, já não estava mais em análise. O uso de ágio foi considerado indevido – por causa da utilização da empresa veículo – em julgamento realizado anteriormente. A Câmara Superior tratou, desta vez, especificamente sobre a aplicação da multa qualificada.
“Esse precedente não aborda a discussão de mérito, de Imposto de Renda e CSLL. A empresa vai ter que arcar com esses pagamentos. O grande ponto, aqui, é a multa qualificada, a redução de 150% para 75%. Entendemos que, com esse precedente, pode haver uma guinada nos casos de ágio, que geralmente envolvem cifras milionárias”, observa o advogado Rubens de Souza, do escritório WFaria.
Além desse primeiro caso envolvendo amortização de ágio, a Câmara Superior proferiu, durante a pandemia, outras 61 decisões relativas à aplicação da multa qualificada em outros temas. Desse total, 34 foram favoráveis aos contribuintes e 13 contrárias. Nos demais casos, o recurso não foi conhecido e os conselheiros nem chegaram, portanto, a analisar o mérito.
Esse levantamento foi feito pela advogada Alessandra Gomensoro, do escritório Mattos Filho. “Percebemos que a Câmara Superior vem sendo criteriosa na aplicação dessas multas”, diz. Entre os julgados, afirma, há casos de omissão de receitas, por exemplo, que não foram oferecidas à tributação.
“Estão entendendo que precisa haver a comprovação. Nesse recurso envolvendo ágio, jamais se tentou ocultar os fatos, a operação foi toda pública. Tratava-se de mera divergência de interpretação. O contribuinte entende a lei de uma forma e o Fisco de outra”, diz a advogada.
O cancelamento da multa qualificada tem impacto financeiro e também desdobramentos na esfera penal. O advogado Maurício Faro, do escritório BMA, explica que a Receita Federal encaminha os casos em que há multa qualificada para o Ministério Público. Trata-se das chamadas representações fiscais com fins penais, que podem motivar a abertura de inquérito e, posteriormente, uma ação criminal contra o contribuinte.
“Mas, para isso, a multa precisa ser confirmada. Se cancelada no Carf, em tese, não deveria haver essa comunicação com o Ministério Público”, diz Faro.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) foi procurada pelo Valor, mas não deu retorno até o fechamento da edição.