Benefícios flexíveis e seus possíveis reflexos trabalhistas e previdenciários

Por Alessandra Marcondes D’Elia e Fernando Pires Gonçalves de Campos

A estruturação de políticas internas de remuneração, concessão de benefícios e gestão de pessoas vêm ganhando cada vez mais destaque e relevância na gestão empresarial – especialmente após o advento da Reforma Trabalhista e, mais recentemente, transição do trabalho presencial para o ambiente virtual (trabalho remoto).

Nesse contexto, tornou-se prática comum o uso dos chamados benefícios flexíveis, que são pacotes de vantagens como vale alimentação, refeição, cultura, planos de saúde/odontológicos, mobilidade, descontos com parceiros (academias, vestuário, beleza/cosméticos) etc., nos quais o próprio colaborador define quais os benefícios mais atrativos para seu caso – observado um limite/recorte definido pelo empregador (normalmente de pontos).

No entanto, dada sua interdisciplinaridade, a implementação ou alteração da forma da concessão de benefícios no contexto acima pode trazer reflexos (riscos) gerenciais importantes – especialmente nos âmbitos trabalhista e tributário-previdenciário, os quais serão analisados a seguir a partir da legislação de regência.

Neste contexto, registre-se inicialmente que as contribuições sobre a folha de salários (cota patronal, SAT/RAT e terceiras entidades) incidem sobre o salário-de-contribuição dos empregados e trabalhadores avulsos – “salário” ou “remuneração”(1), assim entendidos os proventos (i) habituais e (ii) decorrentes de contraprestação (efetiva prestação de serviço)(2).

Consequentemente, os valores com natureza jurídica indenizatória (destinados à reparação de dano ou violação a direito) e os benefícios não podem considerados para efeito da incidência das contribuições previdenciárias e reflexos trabalhistas, porquanto dissociados do conceito legal e constitucional de remuneração.

É o que se extrai da interpretação da legislação tributária-previdenciária e trabalhista de regência: conforme disposto no artigo 28, §9º da Lei de Custeio da Previdência Social (8.212/91) e na Consolidação das Leis do Trabalho (“CLT”), os quais indicam proventos desvinculados da remuneração/salário – tais como alguns benefícios e verbas destinadas a viabilizar o trabalho. Vejamos o que diz a CLT:

“Art. 458 – (…) § 2o Para os efeitos previstos neste artigo, não serão consideradas como salário as seguintes utilidades concedidas pelo empregador:
I – vestuários, equipamentos e outros acessórios fornecidos aos empregados e utilizados no local de trabalho, para a prestação do serviço;
II – educação, em estabelecimento de ensino próprio ou de terceiros, compreendendo os valores relativos a matrícula, mensalidade, anuidade, livros e material didático;
III – transporte destinado ao deslocamento para o trabalho e retorno, em percurso servido ou não por transporte público;
IV – assistência médica, hospitalar e odontológica, prestada diretamente ou mediante seguro-saúde;
V – seguros de vida e de acidentes pessoais;
VI – previdência privada
VII – (VETADO)
VIII – o valor correspondente ao vale-cultura.”

Como se vê, tal como indicado também na Lei de Custeio da Previdência Social, a CLT igualmente traz exemplos de proventos, benefícios e utilidades que não podem ser considerados remuneração, seja para efeito tributário-previdenciário ou trabalhista.

No entanto, é importante estabelecer uma premissa fundamental: a forma ou meio pelo qual o pagamento é feito ao colaborador não desnatura ou descaracteriza a natureza jurídica da verba/provento.

Com efeito, ao analisar o contexto específico dos meios de fornecimento dos benefícios flexíveis, é imprescindível analisar o detalhamento, composição e motivação da disponibilização dos valores para escolha dos empregados – individualmente, caso a caso.

Neste particular, destaque-se como exemplo tema há tempos sedimentado pela jurisprudência em desfavor dos contribuintes em razão da tentativa de desnaturação/desvirtuamento da natureza jurídica do pagamento por meio da adoção de forma de pagamento distinta: cartões de incentivo, o conhecido “incentive house”(3).

Esses cartões de incentivo foram muito utilizados nos anos 2000 e fornecidos a determinados colaboradores para que resgatassem gratificações, bônus, prêmios ou bens ao utilizar-se de cartões magnéticos. A prática foi considerada pela Fiscalização como remuneração disfarçada/indireta para efeitos trabalhistas e tributários-previdenciários, ainda que paga via cartão magnético.

Em entendimento semelhante, a jurisprudência trabalhista já decidiu de forma reiterada que o pagamento, via cartão magnético, de comissões(4) ou importâncias mensais fixas não previstas em lei ou normas coletivas(5) não retira a natureza salarial dos valores ali depositados. Isto porque, a realização de pagamentos recorrentes, atrelado a resultados de vendas e/ou em valores elevados e incompatíveis com o salário do colaborador, por exemplo, evidencia o caráter de contraprestação habitual pelos serviços prestados.

Ou seja, independentemente do formato adotado, o desrespeito às diretrizes legais e convencionais sobre o assunto em voga torna evidente a essência fraudulenta dos valores pagos sob a roupagem de “benefícios”, com o único intuito de burlar a incidência de reflexos trabalhistas e previdenciários.

Em situação absolutamente oposta estão os pagamentos a título fornecido a título de vale transporte e alimentação/refeição, nos quais, a despeito do pagamento via tíquetes ou cartões magnéticos, não há desvirtuamento da natureza jurídica: são benefícios, verbas essencialmente não remuneratórias. Não por outro motivo, na mesma linha de entendimento do Tribunal Superior do Trabalho (TST)(6), o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu há tempos que o VT pago em dinheiro ou cartão não têm natureza remuneratória (RE 478410).

Especificamente sobre os benefícios alimentares, nos quais se incluem o vale-alimentação e o vale-refeição, a legislação trabalhista entendia que sua concessão somente seria considerada obrigatória se houvesse previsão expressa em norma coletiva, em contratos individuais de trabalho ou nas políticas internas das empresas. Via de consequência, tais benefícios, em regra, detinham feição salarial.

No entanto, desde a entrada em vigor da Reforma Trabalhista, o auxílio para fins alimentares foi excepcionado de forma taxativa do rol dos benefícios que detêm natureza salarial, desde que seu valor seja limitado aos percentuais de salário previstos em lei. Destaque-se:

“Art. 457 – Compreendem-se na remuneração do empregado, para todos os efeitos legais, além do salário devido e pago diretamente pelo empregador, como contraprestação do serviço, as gorjetas que receber.

(…)
§ 2º – As importâncias, ainda que habituais, pagas a título de ajuda de custo, auxílio-alimentação, vedado seu pagamento em dinheiro, diárias para viagem, prêmios e abonos não integram a remuneração do empregado, não se incorporam ao contrato de trabalho e não constituem base de incidência de qualquer encargo trabalhista e previdenciário.

§ 3º – A habitação e a alimentação fornecidas como salário-utilidade deverão atender aos fins a que se destinam e não poderão exceder, respectivamente, a 25% (vinte e cinco por cento) e 20% (vinte por cento) do salário-contratual.”.

Desta maneira, respeitadas as limitações supra, também sob a ótica da CLT não há que se falar na incidência de encargos trabalhistas e previdenciários ao auxílio pago in natura ou por meio de tickets, vales ou cartões magnéticos.

Situação um pouco mais complexa é a de alguns benefícios mais modernos, tal como o Gympass, por meio do qual os colaboradores podem frequentar academias e realizar atividades físicas, em decorrência de convênios negociados por seus empregadores. Isto porque, a despeito dos evidentes reflexos positivos na saúde dos colaboradores – o que indiretamente beneficia a própria empresa, pela diminuição dos custos com o absenteísmo de seus colaboradores e com sinistros no plano de saúde coorporativo –, o benefício não se enquadra no conceito de assistência médica, tampouco no das demais utilidades previstas no artigo 458 da CLT.

Deste modo, se de um lado é possível sustentar a natureza não-salarial desta espécie de benefício – na medida em que a benesse visa contribuir para a saúde e o bem-estar dos colaboradores, não configurando efetiva contraprestação pelo trabalho prestado –, de outro é possível entender que o benefício representa um plus salarial, utilizado inclusive para atrair e reter talentos.

De fato, por tratar-se de benefício de utilização ainda muito recente, os tribunais pátrios ainda não tiveram tempo hábil para analisar mais afundo a natureza jurídica e as características relacionadas ao citado benefício, sendo necessário acompanhar a evolução da jurisprudência neste particular. Até porque, a conclusão dos tribunais poderá variar de acordo com as particularidades de cada caso concreto analisado.

Assim, e sendo certo que existe uma infinidade de benefícios disponíveis no mercado, cada um deles com suas particularidades e regras para evitar a incidência de reflexos trabalhistas e previdenciários, a reunião de uma série deles em um mesmo cartão magnético pode acabar gerando incertezas e questionamentos por parte dos colaboradores, do Fisco e das autoridades competentes.

Como consequência, para mitigar tais riscos é importante que as empresas analisem caso a caso se as exigências legais e convencionais estão sendo respeitadas em relação a cada um dos benefícios que compõem o cartão flexível, a fim de evitar questionamentos relacionados à regularidade de sua concessão, na medida em que isso poderia colocar em risco a totalidade dos valores depositados em referido cartão.

Adicionalmente, uma medida que pode conferir maior segurança jurídica às empresas é a pactuação de programas de benefícios flexíveis por Acordo Coletivo de Trabalho, uma vez que tais negociações são respaldadas pela Constituição Federal(7) e pela CLT(8).

Por fim, cumpre registrar que a adoção de supracitadas cautelas certamente irá mitigar os riscos de surgimento de passivos trabalhistas, previdenciários e fiscais, mas, na hipótese de litígio acerca do tema, a palavra final sobre cada caso será dada pela jurisprudência Administrativa e Judicial, com fundamento nos elementos que forem oportunamente apresentados pelas partes envolvidas.

1) “Art. 28. Entende-se por salário-de-contribuição: I – para o empregado e trabalhador avulso: a remuneração auferida em uma ou mais empresas, assim entendida a totalidade dos rendimentos pagos, devidos ou creditados a qualquer título, durante o mês, destinados a retribuir o trabalho, qualquer que seja a sua forma, inclusive as gorjetas, os ganhos habituais sob a forma de utilidades e os adiantamentos decorrentes de reajuste salarial, quer pelos serviços efetivamente prestados, quer pelo tempo à disposição do empregador ou tomador de serviços nos termos da lei ou do contrato ou, ainda, de convenção ou acordo coletivo de trabalho ou sentença normativa;” (grifamos).

2) Por remuneração entende-se os valores pagos a título de (i) salário (contraprestação paga pelo empregador ao empregado), (ii) gorjeta (contraprestação paga por terceiro ao empregado) e (iii) rendimentos do trabalho não assalariado (contraprestação paga pelo tomador ao avulso ou autônomo e pela entidade a seu dirigente ou administrador).

3) MAZZILLO, Leonardo – Cartões de incentivos são alvo de cálculos previdenciários ilegais – Revista Consultor Jurídico, 24/11/2007 – Acessado em 04.03.2021 https://www.conjur.com.br/2007-nov-24/cartoes_incentivos_sao_alvo_calculos_ilegais.

4) Neste sentido: (i) TRT-SP, RO 1000795-88.2018.5.02.0062, 9ª Turma Rel. ELIANE APARECIDA DA SILVA PEDROSO, Publicação: Data: 02/10/2020; e (ii) TRT-SP, RO 1001013-20.2019.5.02.0018, 11ª Turma, Rel. ADRIANA PRADO LIMA, Publicação: 01/09/2020.

5) Neste sentido: (i) TRT-1, RO 101938-24.2016.5.01.0002, Rel. Roberto Norris, 5ª Turma, Publicação: 21/02/2019; e (ii) TRT-10, RO 0001086-03.2013.5.10.0016, Rel. Cilene Ferreira Amaro Santos, 3ª Turma, 27/06/2014.

6) “VALE TRANSPORTE. PAGAMENTO EM PECÚNIA. NATUREZA JURÍDICA. I. O vale-transporte foi instituído pela Lei 7.418/85, cujo art. 2º, a, estabelece a sua natureza indenizatória, razão pela qual não se incorpora à remuneração para nenhum efeito além de não constituir base de incidência de contribuição previdenciária ou de Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. II. Ainda que pago em dinheiro, o vale-transporte não possui natureza salarial, pois preserva o caráter de antecipação das despesas feitas pelo empregado com seu transporte. III. A jurisprudência deste Tribunal se firmou no sentido de que a mera concessão do benefício em dinheiro não tem o condão de transmudar a natureza jurídica do vale-transporte, que, por disposição legal, é indenizatória e não constitui base de incidência para a contribuição previdenciária e para o FGTS. IV. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento.” (TST; RR 3658720105030004; DEJT 18/12/2015).

7) Artigo 7º, inciso XXVI.

8) Artigo 611.

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Mestre em Direito Norte-Americano (LL.M.) com ênfase em International Business
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